Este post se originou de uma conversa iniciada no Twitter com meu amigo Ivan de Almeida (@ivan_de_almeida), autor do excelente Fotografia em Palavras, e que chegou ao limite do que se pode discutir com a devida clareza no limite de 140 caracteres do Twitter. De modo que combinamos de continuar a conversa por aqui.
Tudo começou com um link, divulgado pelo @thalestrigo, de uma palestra do Slavoj Zizek em Princeton: “Why only an atheist can be a true christian“. A que o Ivan fez as seguintes observações:
Ser ateu é perda de tempo. Caso a pessoa seja ateu, faz mais sentido viver a vida e deixar esse assunto de lado…
…Caso a pesoa seja verdadeiramente a-religiosa, para que perder tempo se preocupando com isso? Nem precisa declarar.
…É irracional preocupar-se com o que não existe -risos.
Trata-se de uma objeção, no mínimo, curiosa. Ateus, até onde eu sei, não estão preocupados “com o que não existe”, mas sim com o que existe: bilhões de seres humanos que alimentam crenças ilusórias, irracionais ou das quais não se tem suficiente evidência. Porque crenças, opiniões e idéias, conduzem, motivam e fundamentam as ações, e ações tem conseqüências, logo, crenças, opiniões e idéias tem conseqüências. E na medida em que vivemos em sociedade, as crenças, opiniões e idéias de uns afetam as vidas de outros. Isto é especialmente verdadeiro no que diz respeito à religião. Todos sabemos da importância que a religião tem na política dos EUA, por exemplo, e pudemos ver in loco a religião ser usada como arma política bem aqui, na nossa recém finda campanha eleitoral. É, portanto perfeitamente legítimo que as diferentes crenças existentes, religiosas ou não, sejam postas em questão. Enquanto religiosos estão em campo, através de livros, jornais, revistas, escolas, universidades, canais de TV, rádio, blogs, bancadas parlamentares, etc., buscando que TODA a sociedade, TODAS as pessoas (quer compartilhem de suas convicções ou não) se pautem pelas suas normas particulares de conduta e moralidade (o que ler, o que assistir, o que comer, o que vestir, com quem fazer sexo, como, etc.), querer que os ateus devam “viver a vida” e “deixar esse assunto de lado”, isto é, se calem, é um total despropósito. Não é como se vivêssemos em um contexto onde a Religião tivesse a importância, digamos, da Astrologia, ou fosse algo realmente restrito ao foro íntimo de cada um, não houvesse proselitismo religioso dos mais ativos, e, de repente, ateus aparecessem falando de um assunto a que ninguém dá importância. Tanto é importante que o simples fato de ateus se manifestarem causa grande incômodo.
… o ateu que perde tempo elaborando seu ateísmo está criando uma religião para si mesmo. É ateu? Ótimo. Vá viver.
Não está claro o que o Ivan quis dizer com isso, já que ele nem explicou o que seja “elaborar seu ateísmo” e nem deu exemplos (links?) de quem o faça. Contudo, a crítica de que “ateísmo” também é uma “religião”, ou que ser ateu requer tanta fé quanto ser crente, é tão comum que já se tornou clichê. É uma falácia que tenta desqualificar sumáriamente a posição de quem não crê em divindades. Algo na linha: ‘como você pode criticar a religião se o “ateísmo” também é uma religião?’ O que, como argumento, é muito fraco, pois nem se está defendendo a religião ou a crença num deus, nem se está criticando o “ateísmo” per se. É tão fraco que uma simples piada deixa isso claro: “se ateísmo é religião, não colecionar selos é um hobby“. Apesar disso é um argumento que aparece com freqüência, então precisa ser encarado. Por um lado é preciso que se explicite o que se entende por “ateísmo”
…Ateismo é a posção na qual a pessoa nega qualquer fundo transcendente na existência. Esta é a minha definição…. a negação a um deus personificado e algo caricato, católico ou qualquer outro, é apenas um caso prticular disso [grifo meu]
Uma definição sui generis essa do Ivan. Além de eu não conhecer nenhum ateu que se defina dessa forma, ela levanta mais questões do que esclarece, como: o que raios vem a ser “fundo transcendente na existência”?
…fundo transcendente é aquilo com que lidamos quando entendemos que o mistério da existência não é redutível à Física.
Para efeito de discussão, vamos aceitar, no momento, essa definição de “ateísmo”, fazendo de conta que “fundo transcendente na existência” quer dizer alguma coisa. Daí, a questão óbvia é: se o “mistério da existência” é…..bem…um mistério, então misterioso é, e neste caso, como diabos alguém pode afirmar que ele não é redutível à Física, e que tem um “fundo transcendente”? O que é que se quer dizer com “entender” aqui? Que entendimento é esse e de onde ele vem? É baseado em quê?
Ou, de forma um pouco mais sistemática, o que sabemos que existe, que é real (metafísica e ontologia)? Como sabemos o que sabemos (epistemologia)? O que somos (natureza humana)? Que implicações tudo isso tem sobre nós individualmente e coletivamente, como devemos nos comportar (ética)? Onde isso nos coloca no contexto geral da existência, que lugar ocupamos?
Isso coloca a discussão em termos de Visão de Mundo (Weltanschauung), ou Filosofia de Vida, se preferir. Uma Visão de Mundo procura justamente dar resposta a essas questões, formando um quadro geral consistente da realidade que dá fundamento aos nossos conceitos e ações, dentro de uma perspectiva abrangente. Parafraseando o que o poeta disse da ideologia, poderíamos dizer: Visão de Mundo eu quero uma para viver. Neste sentido cada religião oferece as suas “respostas”, possuindo a sua visão de mundo particular. Mas será que o mesmo pode ser dito do “ateísmo”?
‘Ateu’ quer dizer simplesmente alguém que não acredita em deus(es). Nada mais, nada menos. Essa é a definição dos dicionários, e é a definição mais amplamente usada/aceita por quem assim se identifica. Assim, ‘ateísmo’ não é uma Visão de Mundo, nem sequer um ‘ismo’ verdadeiro, como socialismo, ou cristianismo. Não é uma doutrina, nem uma filosofia. Para Sam Harris, autor de O Fim da Fé, e Carta a uma nação cristã:
[Ateismo]… é simplesmente uma recusa a negar o óbvio…ninguém precisa se identificar como um não-astrólogo, ou um não-alquimista. Consequentemente não temos palavras para pessoas que negam validade a essas pseudo-disciplinas. Da mesma forma ‘ateísmo’ é um termo que nem deveria existir. Ateísmo não é nada mais do que os ruídos que as pessoas sensatas fazem na presença de dogma religioso.
Contudo, é claro ser ateu por si só não quer dizer muita coisa. Afinal as pessoas não se definem por aquilo em que não creem (onde ‘crer‘, aqui, é na acepção de ‘ter como verdadeiro‘, não no sentido de ‘ter fé’ religiosa), de modo que o termo ‘ateísmo’ é bastante limitado como definição. Com isso há ateus com as mais variadas posições, inclusive frente às religiões e ao fenômeno religioso, de modo que é muito difícil, por exemplo, achar pontos de unidade além da afirmação da liberdade de manifestação e expressão, e do necessário caráter secular do Estado. Muito pouco portanto, para chamarmos “ateísmo” de religião, e isso sem sequer entrarmos na seara de definir religião.
Entretanto há um outro lado, que é o fato de que ninguém (ou muito poucos) é somente ateu. Creio que na maioria dos casos, ser ateu é um ponto de chegada, não um ponto de partida. É uma conclusão, não um postulado. Isto é, ser ateu é uma condição que se inscreve no quadro mais abrangente de uma Visão de Mundo, por óbvio, não-religiosa. Querer comparar ‘ateísmo’ com religião, portanto, é, na melhor das hipóteses, comparar um elemento singular de uma Visão de Mundo, com uma Visão de Mundo completa. Uma falácia portanto.
E, se a questão é por na mesa as diferentes Visões de Mundo em disputa, que se o faça corretamente, pondo em questão seus pressupostos, fundamentos, e as respostas que dão às questões fundamentais:
- Como sabemos o que sabemos, e qual justificativa temos para julgá-lo verdadeiro? Como sabemos o que é real? (Epistemologia e cognição)
- O que existe, o que é real, de acordo com esse método de conhecimento?(Metafísica e ontologia)
- Quem somos, e o que somos essencialmente?
- Que valores devemos ter individualmente e coletivamente?(ética e moral)
- Qual o sentido disso tudo, se há?
Mas aí, só em outro(s) post(s), que esse já deu.
Enquanto isso, alguns links:
Visão de Mundo: Naturalism in a nutshell, Naturalism.Org
Ética e moral: Morality in the Real World (podcasts), Alonzo Fyfe’s Guest Posts on Applied Ethics
Um agnóstico vê mais implicações no ateísmo: The Seven Atheist Denials: God, the Self, the Soul, Immortality, Free Will, the Good, and You’re Never Really Alone
Um ateu notório critica os próprios ateus: Why are you an atheist?
[…] Comentários « O que é ser ateu? […]
Caríssimo Eneraldo;
Gostei de ler sua argumentação, muito bem montada, muito bem escrita, e textos muito bons dão prazer de ler, independentemente de com eles concordarmos ou não. Sinto ao ler o seu texto como havendo um mal-entendido. Eu e você falamos de coisas distintas. Falo da dimensão pessoal do ateísmo, ou da religiosidade, enquanto leio você enfatizar a dimensão social, ou da Religião.
Do ponto de vista do indivíduo, isto é, do ponto de vista daquele que procura suas próprias conclusões para viver sua vida, que é o meu ponto de vista, uma vez chegada a uma conclusão com base em suas experiências pessoais (que incluem cultura, ambiente, práticas e acidentes), conclusão essa, insisto, primeira pessoa do singular, é sem sentido debater o ponto de vista alheio, e isso vale para os dois casos, tanto o ateu ficar debatendo o ponto de vista da religiosidade quanto o não ateu ficar debatendo o ateísmo. O ateísmo simplesmente não me interessa, é para mim um mero engano baseado em uma crença em algo que estruturalmente não pode ser crido –a ciência-, tomando-a pelo que não é. E é uma tese anti-Popper, visto ser um lançar da visão da ciência sobre um campo que não pode ser submetido a testes de falseabilidade. Ateísmo científico é mera besteira epistemológica.
Porque lançar sobre a religiosidade uma visão científica é tomar tal visão cientifica como objetiva e absolutamente includente, e isso é algo que nem mesmo se pode considerar em nossa época. É uma ilusão da época da Ciência Clássica, somente.
Uma grande confusão existe em se confundir objetividade com crença intersubjetiva. A ciência foi uma crença intersubjetiva e ainda é para alguns, mas o fato de ser uma crença partilhada (portanto intersubjetiva) não a torna objetiva. Ciência é pensada por subjetividades, e, por isso, em si carrega todas as impurezas das subjetividades históricas e culturalmente conformadas que a modelam. E não se pode argumentar que tal e qual outra coisa é subjetiva contrastando-a com a ciência, visto a ciência ser também.
Veja, ser sem sentido debater algo não é o mesmo que ser proibido. Não há nenhuma petição para calar-se. O que há é somente minha observação de ser perda de tempo alguém convicto de um ponto de vista ficar perdendo tempo com algo que não considera pertinente. O mesmo se dá no meu caso, acho debater ateísmo perda de tempo assim como debater ETs, o fim do mundo ou a origem do Universo. São assuntos que não me interessam porque “não movem moinhos”. Sou uma pessoa prática, pragmática, utilitarista, não gosto de discussões onde nada de útil se obtenha.
Já sua Santa Cruzada Ateísta contra a religião, a ela sou indiferente, não é desse assunto que cuido em minha dimensão pessoal. Só acho que as mazelas sociais não são decorrentes somente dos valores e fundamentos religiosos embutidos nas sociedades, fosse assim sociedades absolutamente laicas como a URSS ou a China maioísta, libertadas que estavam de tais princípios, não teriam contribuído tão generosamente para o estoque de mazelas humanas. Prefiro pensar que tais mazelas são resultado do eterno egoísmo humano que pode se justificar de mil maneiras, ou pela religião, ou pela ciência, ou meramente pela força.
Grande abraço
Ivan
PS: não vou lhe oferecer nenhum texto referência. Meu ponto de vista é que as pessoas devem pensar com base nos argumentos apresentados, e não baseados na “autoridade” de qualquer texto.
Como sabemos o que sabemos, e qual justificativa temos para julgá-lo verdadeiro?
Isso de verdadeiro não existe. Existe conhecimento útil, que é aquele que usamos para perseguirmos nossa meta de sempre: sobreviver e procriar. Conhecimento é um ajuste eficaz de conduta com o ambiente só que enunciado.
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Como sabemos o que é real? (Epistemologia e cognição)
Quem acha que sabe o que é Real é maluco. Real é meramente uma expectativa nossa em relação à aparência e ao comportamento do universo, que assumimos para nele vivermos e praticarmos atos eficazes.
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O que existe, o que é real, de acordo com esse método de conhecimento?(Metafísica e ontologia)
Já começa dizendo “com esse método”, assumindo que esse método dê conta…. Mas não dá.
Algo há, que é nossa presença. Mas é redundante falar de algo haver, porque se fala disso a partir desse mesmo haver. “Algo há”, “eu existo” “algo existe” e enunciar isso são sinônimos, locuções sem conteúdo. São questões circulares sem serventia alguma.
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Quem somos, e o que somos essencialmente?
Outra pergunta sem sentido. Nossa presença é o que somos, mas nossa presença não pode ser qualificada a partir dela mesma.
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Que valores devemos ter individualmente e coletivamente?(ética e moral)
Agora sim, a primeira questão útil. Os valores que devemos ter são aqueles que nossa experiência nos mostrar provocarem menor sofrimento em nós, e, elaborando um pouco, nos próximos, sendo o conceito de próximo mais abrangente ou menos conforme cada um seja capaz de sustentar e mais pertinente ou não conforme se enxergue a relação entre o bem próprio e o coletivo.
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Qual o sentido disso tudo, se há?
O sentido de todas as coisas é de natureza emocional. São os afetos que dão sentido à vida. Não há nenhuma resposta para essa pergunta em termos de discurso, nem precisa haver.
Deixo o conselho do Wittgenstein: Sobre o que não se pode falar, deve-se calar. O que ele quis dizer com isso é que o discurso tem certos limites e não adianta supor que ele dará conta de coisas que não dá.
Eneraldo, talvez para provar sua tese, vou mostrar que, mesmo sendo ateu, discordo de alguns aspectos do seu texto. Mas vou me ater só a um ponto importante: o Ivan definiu ateísmo como “a posção na qual a pessoa nega qualquer fundo transcendente na existência”, e você depois simplesmente que ateu é quem nega que deus(es) existe(am).
Ora, aqui se confunde uma definição histórica com uma filosófica. Historicamente, os ateus são os que negam todos os fundamentos mesmo (e aí está o erro do Ivan), mas você também não pode negar que, apesar de sua definição ser mais simples e cortante, não exclui a definição do Ivan.
Na verdade, as definições em qualquer dicionário de filosofia de “transcendente” e “imanente” dizem respeito justamente ao princípio do ser: está na coisa-em-si ou em alguma idéia anterior, além ou “fora” dela? Obviamente que poderia se confundir ateísmo com imanentismo, mas existem ateus da linha ortodoxa linha-dura partindo pra porra de tendência platônica transcendental, como Schopenhauer, por exemplo.
Já quanto ao comentário do Ivan acima, eu apontaria 3 coisas: como o próprio texto indica, a religião, por mais “opção pessoal” que seja, tem sua parcela social. Basta ver uma discussão sobre Teoria da Evolução, aborto, eutanásia ou similares. E, sobretudo: se é MESMO uma opção pessoal para TODO MUNDO, e não só para aqueles que refletem, porque a maioria das pessoas tem a religião dos pais, e vejo poucos muçulmanos no Brasil, enquanto há católico em cada esquina? Religião também passa por genes dominantes, já provava Mendel.
Também há a típica visão de alguns cristãos de tentam igualar ciência à religião. É tão fácil provar que isso está errado que dá desânimo. Se ciência é “intersubjetividade”, só mesmo Deus todo-poderoso para ter feito tanta gente “acreditar” em algo “subjetivo” e absurdamente não-compreensível como a relatividade geral e a restrita.
Por fim, vejo uma verdadeira cruzada anti-religião de algumas entidades ateístas como a ATEA. Não sei se é o caso desse blog (aonde acabo de cair de pára-quedas), mas achar que qualquer coisa que seja declaração de ateísmo seja “cruzada ateísta” não me soa muito sensato – praticamente toda manifestação religiosa não seria considerada “cruzada”.
Mas faço um adendo ao que disse: na URSS e na China maoísta, o problema não foi o secularismo ou o Estado laico, e sim serem as maiores teocracias do séc. XX, maiores até que alguns países islâmicos: o mundo conheceu 5 grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, o marxismo e a psicanálise.
Abraços.
Flávio
Eu não usei, e nem uso, o verbo “negar” para definir quem é ateu, pois entendo que essa formulação ‘ateu-é-quem-nega-pa-ta-ti-pa-ta-ta’, faz, de forma sutil, uma inversão do ônus da prova. Isto é, quando se diz que ateu é quem nega a existência de alguma coisa, se está, implícitamente, afirmando essa existência, sem contudo, fornecer as devidas justificativas, fundamentos, evidências dessa suposta existência. A existência dessa alguma coisa é tomada como um dado, um pré-suposto, que como não é explicitado não precisa ser justificado. Ocorre que quem afima alguma coisa deve sim dar justificativas da afirmação. Quem afirma a existência de deus ou um “fundo transcndente” qualquer é quem deve fornecer evidências da sua afirmação. Não o ateu, que simplesmente não vê razão para acreditar em uma proposição que não arcou com o ônus da prova.
Também é sempre um prazer dialogar com você Ivan, mesmo quando não concordamos. O que parece ser o caso.
Confesso que acho engraçado você dizer que não tem interesse nesse tipo de discussão, quando foi você quem a começou com o seu comentário meio irônico no twitter. Se não houvesse interesse algum você teria deixado passar, “seguir a vida”, como você acha que os ateus deviam fazer não é? E no entanto você chegou até aqui, e gastando um bocado de texto para algo tão sem interesse. Você parece achar que o ateísmo é um “engano” tão grande, que extrapola essa distinção entre o pessoal e o social, mais do que outros pontos de vista. Ou, dito de outra forma, parece que o ateísmo tem o poder de incomodar, mais do que outras coisas. Se eu tivesse retuitado um link para alguma obscura religião exótica qualquer, muito provavelmente teria passado despercebido por você. Já o ateísmo parece ter ativado algum tipo de alarme epistemológico/metafísico.
Quando você diz que o ateísmo é
, e que
o que me parece é que você está, na melhor hipótese, tomando o “ateísmo” pelo que ele não é: uma visão de mundo positiva, com começo meio e fim. Na pior, você está, de fato, criticando não o meu “ateísmo” ou o de qualquer ateu do mundo real, mas o dos seus pré-conceitos. Isso tem até nome inclusive: Falácia do Espantalho.
Na verdade a questão é muito simples, mas você a tem evitado até aqui: baseado em quê você afirma que o “mistério da existência” não é “redutível à física”? Que evidências intersubjetivas, públicas, você tem disso? O que raios é o tal “fundo transcendente”?
Se a ciência é uma “crença partilhada”, supostamente tão “subjetiva” quanto outras “crenças”, qual é o critério que te permite afirmar que o “ateísmo” é um equívoco? Se a ciência é tão “subjetiva” quanto “tal e outra coisa”, então, no mínimo, ela é tão válida quanto qualquer outra coisa e tal, não é? Mas então, você não pode falar em “engano”, a menos que deixe claro qual é o “acerto” e porquê.
Você confunde o fato de sermos dependentes, limitados pela nossa subjetividade, com a inexistência de objetividade no mundo real, e quiçá do próprio mundo real, que você chama de “ambiente”. Não vejo vantagem em trocar ‘verdade’ por ‘conhecimento útil’ (o que implicaria em ‘conhecimento inútil’?), ou ‘realidade’ por ‘ambiente’. Conhecimento só o é se for útil, e só é útil se for verdadeiro, se corresponder ao mundo real, se nos fornecer um mapa confiável da realidade, do “ambiente” onde nos movemos. Se nos permitir empreender “ações eficazes”, e inclusive poder avaliar essa eficácia. E os melhores mapas de que dispomos até o momento, são aqueles baseados no exame intersubjetivo de evidências públicas intersubjetivas, consolidados no conjunto de “crenças intersubjetivas” que chamamos de Ciências.
Se você conhece coisa melhor, sou todo ouvidos.
Por fim, realmente não entendi o que você quis dizer com o seu P.S.
Abraços
Eneraldo;
Para além das religiões organizadas, a qual só me interessam na medida de serem derivadas em sua maior parte da experiência mística originária de alguém em algum momento do passado, creio que a grande diferença entre o místico e o ateu é a forma com que lidam com o mistério de existir.
O ateu, bem ou mal, despe tal mistério de qualquer significado outro a não ser uma engendração por causalidade natural. Ora, isso significa ter certa dose de esperança em conhecer tal causalidade, conhecimento esse que constituiria um corpo de saberes com certo viés de validação.
O místico é mais difícil de tipificar porque há místicos e místicos. Posso falar por mim que sendo não-ateu sou místico. No meu caso, penso que, assim como pensam os ateus, tudo o que há resulta de um engendramento natural, e sendo natural é investigável através de um método.
Onde estaria a diferença, pois ela há?
A diferença é algo citado no primeiro parágrafo. Penso que toda a validação depende de um afinamento da experiência pessoal. Esse afinamento pode ser uma convergência social, um acordo social sobre o significado das coisas – e a ciência é um acordo desses- ou pode ser um afinamento para certa classe de experiência que significa diferentemente para o vivente, coisa que aqui chamarei de experiência mística.
Ora, experiências dependem do experimentador. Quem nunca foi a um lugar frio não sabe o que é sentir frio, quem nunca tomou vinho não conhece seu gosto, quem nunca viu a cor azul não sabe o que é azul. Da mesma maneira, quem não se aproximou, intencional ou espontaneamente das experiências místicas não sabe exatamente o que são.
Assim como qualquer experiência, a experiência mística possui uma dinâmica neurológica. Podemos dizer que acontece a presença de neutotransmissores, a presença de determinadas ondas cerebrais, a presença de ativações em partes específicas do cérebro, e ser assim só mostra que é, como qualquer outra, uma experiência natural, não mágica.
Contudo, ela para o vivente não se reduz a essa dinâmica neurológica, da mesma maneira que o amor que você sente por sua família não se resume ao comportamento neurológico que a ela é associado. Veja, você sabe que ama a sua família, e isso não é uma modificaçao neurológica importante, mas há momentos em que você sente esse amor, e esse é o significado ao qual você se refere no saber. E quando você o sente seu cérebro não está trabalhando igual a quando você apenas sabe.
Você não desvalida esse amor só porque há um estado neurológico típico que é a ele correspondente e sem o qual ele não acontece. O significado de amar é motivo de suas decisões, orienta a sua vida, é coisa concreta e não mágica nem desvalorizada, mas, colocado em termos estritamente ateus, não passa de um estado neurológico, da mesma maneira que são as experiências místicas.
Ora, enquanto as experiências de amar são admitidas pela sociedade como mais ou menos comuns, embora haja gente que seja incapaz disso, as experiências místicas são duvidáveis por quem não as experimentou. E não experimentá-las é relativamente comum, porque enquanto a vida social elege o amor como móvel válido, não elege as experiências místicas como tal em nossa época.
Para saber o gosto do vinho é preciso provar o vinho, e para saber o significado das experiências místicas é preciso buscá-las. Há uma grande região de tais experiências, essa região começa no mais simples relaxamento, avança por certos transes e pode chegar à epifania. Ninguém pode assegurar a epifania como resultado de treinamento, mas os transes e relaxamentos e meditações podem ser alcançados facilmente por quem se proponha a eles.
Ao lidar com essas experiências, emerge para o experimentador um significado, e esse significado é o material primário do sentimento religioso. Alguns, a partir disso, entram em religiões organizadas (o que não significa que todos os que praticam religiões organizadas tenham sequer se aproximado disso), outros fundam religiões, outros apenas cultivam em si essa contemplação do mistério, a qual não contradita o engendramento natural das coisas, apenas sugere ao vivente haver uma espécide de existência-da-existência que tem uma feição muito diferente da feição do mundo cotidiano, e que vale a pena buscar.
Abraços
Ivan
Se você me permite, vamos por partes, mas não necessáriamente em ordem.
Penso que você continua a confundir ser ateu com ser naturalista ontológico. É uma confusão compreensível até certo ponto, pois o Naturalismo Ontológico ou Filosófico implica em ateísmo, mas o inverso não ocorre necessáriamente.
Bom, essa é a premissa básica do Naturalismo Ontológico, mas insisto, se o NO implica no ateísmo, o inverso não é verdadeiro.
Verdade em termos, pois, para todos aqueles que já experimentaram frio, vinho ou azul, salvo diferenças de aclimatação, e/ou deficiências/limitações gustativas, e/ou visuais, frio/vinho/azul correspondem todas, cada uma, a uma mesma experiência. Isto é, diferentes (tanto quanto possível) experimentadores terão as mesmas experiências de frio/vinho/azul, de tal modo que as próprias palavras frio/vinho/azul tenham algum significado, pois frio/vinho/azul correspondem a estados de coisas externos, portanto independentes dos experimentadores, e como tal previsíveis.
Aqui me parece que há um outro tipo de confusão. Frio/vinho/azul são palavras. Palavras significam idéias, conceitos, categorias de pensamento. Palavras são convenções, isto é, o seu significado resulta sim de um acordo social. Diferentes culturas, se expressam em diferentes idiomas, usando diferentes palavras para os mesmos conceitos, mas também, com freqüência, tem palavras para conceitos inexistentes, alienígenas a outras culturas. Como somos “prisioneiros” da língua e das palavras, pois é por elas que conceituamos (inclusive a nós mesmos), o fato das palavras serem fruto de acordo social pode sugerir que aquilo a que elas se referem também é fruto de um “acordo social”. Ocorre que uma maçã é uma maçã, quer a chamamos de maçã, ou de apple. A palavra, fruto de acordo social, ‘maçã’, não é ela própria A maçã.
Não sei se fui claro.
Quando você fala em (des)’validar’ e (des)’valorizar’, junto com “se resume”, isso me sugere um julgamento de valor que eu acho descabido. Produto, inconsciente quero crer, da hegemonia dualista que permeia a própria linguagem. Se, aquilo que chamamos de EU, nossa subjetividade, é resultado das complexas interações neurológicas do/no cérebro, então é. Então EU e meu cérebro somos UM, de tal modo que sequer faz sentido falar em MEU cérebro, como se o cérebro fosse algo separado, distinto, habitado por um EU. Se é assim, é assim. Não vejo sentido em julgar que esse fato “deslavide” ou “desvalorize” o sentimento que tenho (EU-cérebro) por minha família. Não acho que reconhecer que minha subjetividade faz parte de um conjunto de relações causais naturais (se for este mesmo o caso), signifique que esssa subjetividade tenha um valor menor para mim do que teria se fosse mágica.
Agora, quanto às chamadas experiências “místicas”, em nenhum momento nego que elas existam, nem questiono a ‘validade’ de vivenciá-las, de buscá-las. O que acho discutível é o caráter e o significado que se atribui a elas, incluindo o próprio termo “místicas”, que fica, por falta de outro melhor, mas que também é um termo marcado pela tradição dualista, que não só afirma haver um mundo “espiritual” paralelo ao mundo físico, como estabelece uma hierarquia entre os 2. O problema é que esse tipo de experiência, até onde sei, é muito diferente do tipo de experiência de que falamos antes: sentir frio/degustar vinho/ver azul. Experiências “místicas” são vivenciadas por inúmeras pessoas, todos os dias, ao redor do mundo. Inclusive ateus. Só que essa vivência acaba se revelando indissociável da subjetividade e das circunstâncias contingentes de cada vivente. Um cristão, um islamita e um israelita em Jerusalem, podem todos viver experiências místicas marcantes, mas que serão todas diferentes, não por coincidência, ligadas à confissão religiosa de cada um, interpretadas dentro desse quadro de referências particular. O mesmo vale para hindus, budistas, umbandistas, etc. Portanto vejo muito pouca razão para crer que essas experiências devam ser vistas como indício ou evidência de uma realidade transcendente à física, não natural portanto. Seria completamente diferente a situação, se houvessem casos de hindus, budistas ou islamitas tendo visões de Cristo ou da Virgem Maria, por exemplo. Ou, num recorte mais “secular”, se alguém psicografasse a cura do câncer.
De novo insisto que nada disso tira o valor dessas experiências em si mesmas, a menos que se esteja operando dentro de uma narrativa dualista tradicional.
Como disse Douglas Adams (1952-2000) certa vez
Abraços
“Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança da própria fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua própria vontade de crer. Por isso quem tentar honestamente prestar contas da fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas. [10] Para começar, no crente existe a ameaça da incerteza capaz de revelar dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade de tudo o que, em geral, lhe parece tão evidente.”
Essas são palavras de Ratzinger, no Capítulo Primeiro da obra Introdução ao Cristianismo ( http://www.4shared.com/office/oS6pkR2X/Joseph_Ratzinger_-_Introduo_ao.html ).
Para que você entenda realmente o que é a religião cristã, assim como a relação que existe entre fé e incredulidade, sugiro a leitura de, pelo menos, o primeiro capítulo desse livro.
Paulo
Grato pelo comentário, apesar dele não ter nada a ver com o tópico, nem com coisa alguma. Aliás, não está claro o propósito do seu comentário, pois nada indica que você sequer tenha lido o texto que está “comentando”. Fica a impressão que você está apenas aproveitando a oportunidade para divulgar o texto do Ratzinger, e se for isso, devo adverti-lo que futuros comentários nessa mesma linha serão removidos. Tenho todo interesse em discutir com quem tem opiniões contrárias à minha, desde que se atenha ao tópico, e forneça algo mais substantivo.
No mais, devo dizer que se esse for um trecho representativo da prosa de Ratzinger, digamos que eu não tenha ficado muito impressionado. Você deve levar em conta que, como ateu, minha questão é anterior à própria religião cristã, e que para mim nem você, nem Ratzinger, tem autoridade para pontificar sobre o que “realmente é a religião cristã”, dado que há mais de 30 mil denominações que assim se reivindicam.
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